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- INVISÃVEL

Nunca mais chorei

Já se passaram alguns meses, mas me lembro bem. Era uma sexta-feira dessas que o sol rasga a pele de tão forte e minha consulta no oftalmologista estava marcada havia algum tempo.

Uma dor de cabeça – e as minhas são sempre maiores devido a uma caixa craniana visivelmente avantajada – vinha de tempos em tempos feito um marcador da água ou missionário religioso, sempre incomodando e me fazendo pensar que devo maneirar na leitura compulsiva, comprar uma proteção no notebook ou simplesmente usar óculos para as tantas horas em que escrevo linhas tortas como essas.

Era isso: fui quatro olhos por alguns anos entre a infância e a adolescência e apenas as lentes envidraçadas eram capazes de fazer meus olhos descansarem da exaustão de quem tudo observa.

A espera de quase uma hora me fazia avançar ferozmente em mais um livro em meio a doentes, senhoras, crianças e pacientes sem paciência. Planos de saúde nos levam ao purgatório, no máximo.

Quando entrei no consultório e encostei o queixo sobre um equipamento semelhante àqueles usados nos submarinos para ver o que se passa fora das águas, o médico olhou-me com uma luz incômoda e esquisita, feito uma lanterna à beira da estrada para auxiliar a procura por um animal fugitivo.

Nada de óculos, você enxerga perfeitamente, ele disse. Apenas use esse colírio três vezes ao dia. Por muito forçá-los, seus olhos produzem poucas lágrimas, ele vai fazer com que haja maior lubrificação na córnea, completou, pedindo meu retorno dali a três meses.

Ele disse que meus olhos produzem poucas lágrimas e lembrei que pouco choro.

Aparento ser pouco emotivo enquanto meu sistema de defesa emocional resguarda todas as confissões e lamúrias ao travesseiro, no fim da noite. Choro para dentro, com facadas emocionais de dentro para fora em meu coração de invejar Hannibal Lecter e seus discípulos. Mesmo nos momentos de pé na bunda, decepções, perdas, sempre me seguro ao máximo.

Não me envergonho de chorar mais do que de minha incapacidade de fazê-lo.

Ainda sinto dificuldades para usar esse colírio quando acordo, depois do almoço e antes de ir dormir. Pingo a gota sagrada no nariz, na bochecha… Coisas de quem não é capaz de andar dez metros sem tropeçar, cair, derrubar, chutar, destruir. Costume de quem tem um corpo desengonçado e caricato.

Você produz poucas lágrimas, ainda ouço como um eco à beira do abismo.

Lembro-me da minha dificuldade em expressar meus sentimentos, timidez, vergonhas absurdas como a de ir a um balcão pedir uma cerveja. Devo ser esquecido nos momentos de festejos por todos os que me cercam por não transparecer nada de emotivo. Em contrapartida, sou o primeiro nome na hora de salvar os mais próximos pela seriedade aparente. Ele é forte, devem pensar. Não precisa desabafar, conversar, ser ajudado. É um exemplo.

Meus problemas emocionais soam como piada.

E apenas um colírio é capaz de me fazer expor as lágrimas de tudo que chorei por dentro diariamente. Mas nesse caso, elas são sempre de sangue.