É só o tempo nublar e os dias ficarem mais frios como os últimos que já penso duas vezes na hora de atravessar a rua. Meu medo maior é ser atropelado e ficar deitado em meio a uma multidão de curiosos, cara a cara com o céu esperando socorro, enquanto as precipitações vão de encontro à minha face sem chance de defesa.
Muito pior do que queimar no asfalto do verão, quando a pele se gruda aonde outros pneus vão levar gente para lá e para cá.
Se já há certa melancolia no frio com sua ausência de sorrisos, quando ele está acompanhado de sua prima distante, a chuva, parece que todo castigo é imperdoável.
As bocas rachadas, os casacos gigantes e os guarda-chuvas que teimam em criar goteiras, enquanto os chinelos jogam água reciclada das calçadas sobre nossas panturrilhas, criando lágrimas cor de piche escorrendo até o calcanhar.
Pois a água que cai do céu não tem piedade de ninguém. Não existe pouco frio, ou ele vem em escala estratosférica ou é só um capricho nosso para tirar a roupa do armário. De forma semelhante, toda chuva requer o dobro de atenção no deslocamento de uma calçada para a outra.
Tenho pesadelos constantes, mesmo quando acordado, nos quais atravesso uma dessas ruazinhas que cortam as grandes avenidas, algumas sem semáforo. É comum sempre olhar para trás para tentar chegar ao outro lado bem rápido, sem esperar o semáforo ficar tão vermelho quanto o sangue que se mistura à água precipitada do céu quando há um choque entre máquina e corpo humano.
O horror, o horror!
O frio do solo gelado traz de brinde uma pneumonia aos ossos quebrados enquanto o motorista grita que “ele estava errado, vocês viram?” e busca se desvencilhar para seguir o caminho e não chegar atrasado: tive um contratempo no caminho, o trânsito nessa cidade está cada vez mais complicado, diria.
Interrompo a calçada corrida para abrir um guarda-chuva moderno, se é que eles existem. Em que pese minha compulsão por perdê-los, nunca vi nenhum que valha o preço pago, sua vida útil é sempre menor do que a esperada. Quando não são esquecidos ou doados, quebram com um sopro divino ao fim de tarde. Fora o desconforto de sair com ele e usá-lo naquelas horas, mesmo sabendo que as consequências por ignorá-lo podem ser ainda mais terríveis. Os guarda-chuvas são os primos pobres das camisinhas.
E vou esperar com muita cautela na hora de atravessar a rua, mesmo que executivas e office-boys me xinguem pela minha lerdeza.
Não quero me deitar no asfalto.