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Santos / Cotidiano

ONG TAMTAM: A união entre a arte e a loucura

Por Liliane Souza

O que é a loucura para você? Enquanto alguns tentam fugir dela, outros vão atrás porque sabem que a vida é uma verdadeira loucura. E é assim que há quase 30 anos existe o projeto TAMTAM, Organização Não Governamental de Santos referência em saúde mental e luta antimanicomial.

O objetivo é tornar a inclusão social uma realidade através de ações desenvolvidas por meio da arte, o que inclui atividades como teatro, dança, artes plásticas e comunicação. Atualmente, são 190 beneficiados, mais de 10 atividades e cinco voluntários fixos (a TAMTAM já chegou a ter 25).

Do dicionário, loucura diz respeito a tudo o que está fora das regras da normalidade; entusiasmo exagerado ou insano; desvario; o que revela falta de senso ou juízo, maluquice, piração. E foi inspirado na ruptura de paradigmas que o arte-educador e pedagogo Renato Di Renzo iniciou o trabalho na antiga Casa de Saúde Anchieta, em Santos.

De seus 63 anos, quase 30 são dedicados ao trabalho que começou no hospital psiquiátrico privado, conhecido como “casa dos horroresâ€. A má gestão do local, que não oferecia condições mínimas para um atendimento digno somada à morte de três pacientes e denúncias de maus-tratos culminou na intervenção da Casa Anchieta. Era 3 de maio de 1989 quando o prédio localizado na Rua São Paulo, 95, na Vila Belmiro, foi tomado pelo poder público municipal.

Di Renzo morava em São Paulo quando recebeu o convite para fazer parte das ações de intervenção no hospital psiquiátrico. Até então, pensava que fosse ficar como voluntário, mas acabou sendo contratado. Foi aí que ele deixou a capital e voltou a morar em Santos.

Até que o hospício fosse substituído pelos chamados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), hoje conhecidos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), uma nova equipe passou a tomar conta da Casa Anchieta, entre eles, Di Renzo. Seu trabalho começou vinculado à prefeitura. Em setembro, com a inauguração do equipamento, ele passou a fazer parte da equipe do NAPS da Zona Noroeste.

Sua tarefa era realizar projetos teatrais com os loucos, mas foi além. Como ele mesmo diz, não se tratava de fazer arte, mas de entender a linguagem do outro através de provocações artísticas. “Não é que nem a linguagem que a gente tem aqui, cheia de estereótipos, cheia de censuras e tudo mais. O louco rompe com essas coisas todas. Por isso que ele é visto como loucoâ€.

Quando você lê o nome TAMTAM, o que vem à sua mente? Esqueça significados como doido, maluco ou pirado. O tantan é um instrumento de percussão, um tipo de tambor tocado com as mãos, bastante utilizado no samba. O nome que hoje batiza a ONG surgiu durante uma discussão entre Di Renzo e alguns pacientes para saber qual seria o nome do jornal que eles criariam, ainda em 1989, a partir da inauguração do NAPS da Zona Noroeste.

A Rádio TAMTAM surgiu em 1990. Depois que cada um de seus loucutores tinham escolhido um apelido, mãos à obra. O programa foi pauta para a imprensa nacional e internacional. Eles começaram com um espaço de meia hora durante três meses às 16 horas até que em pouco tempo “o programa do tamanho da sua loucuraâ€, slogan da rádio TAMTAM, passou a fazer a cabeça dos ouvintes diariamente durante uma hora.

O sucesso foi tanto que se transformou em um resgate de um programa de auditório. As pessoas queriam ver de perto como era o trabalho daqueles loucos que berravam e animavam as tardes, com programação transmitida sempre ao vivo. “Foi uma ruptura muito grande de não pode isso, não pode aquilo. A história da TAMTAM é muito significativa para formar qualquer pessoa daquela geração e dessa. Foi uma comunicação ao contrário. Comunicação marco zero, o início da falaâ€.

A rádio foi extinta após nove anos, como conta Di Renzo, devido a mudanças na administração de rádios santistas à época. Ele chegou a receber convites de outras emissoras para fazer programas gravados, mas não aceitou porque esse não era o propósito.

Em 1996, a galera da TAMTAM ocupava um espaço no terceiro piso do Teatro Municipal Brás Cubas. Lá funcionava o Zazar’H Bar, que inspirou o hoje chamado Café Teatro Rolidei.

ONG – A partir do ano seguinte, a TAMTAM passou a se constituir como uma ONG. Di Renzo acredita que se o projeto não tivesse passado a ser independente, certamente teria deixado de existir devido a mudanças de governo.

A partir de então, ele se juntou a alguns apoiadores para desenvolver as atividades. De pátios de escolas a galpões abandonados, a TAMTAM foi passando por lugares temporários até que em 2003 voltou a ocupar o espaço no Teatro Municipal, batizado de “Espaço Sócio Cultural e Educativo Café Teatro Rolideiâ€. Lá permanece até hoje como um local voltado tanto para as atividades internas como para a promoção de eventos abertos ao público.

A bailarina – Voluntária, a bailarina e psicóloga Claudia Alonso faz parte do projeto TAMTAM desde a década de 1990. Ela foi contratada pela Casa de Saúde Anchieta para atuar como educadora de dança. Lá, conheceu Di Renzo. A parceria foi tanta que, em 1993, ele passou a comandar as atividades do grupo de dança Orgone, criado por Cláudia em 1987. Foi então que o grupo passou a representar a integração entra a dança e o teatro, tudo como parte das atividades da TAMTAM.

“Os pacientes tinham os corpos muito machucados, doloridos. E eu queria dar aquele ballet super tradicional. Aí o Renato entrava na sala e fazia uma revolução. Ele começava a dançar livremente para lá e para cá com os pacientes e eles iam na dele. Eu ficava meio desesperada porque eu não sabia o que fazerâ€, lembra Cláudia.

Ela conta que o desespero rapidamente foi se transformando em aprendizado, em um exercício diário de olhar e conviver com a diversidade das pessoas. E é nesse ritmo que a ONG trabalha para desconstruir padrões. “A gente tem louco, cego, surdo, manco, dow, autista, você, seu filho, o vizinho, o branco, o preto. Todo mundo juntoâ€.

Concursada, Cláudia divide o trabalho na Sessão de Reabilitação e Fisioterapia da prefeitura de Santos com as ações da ONG. “A gente passa um monte de dificuldades aqui dentro, mas elas não são maiores do que a nossa vontade de fazer acontecerâ€.

Ela conta que a ONG precisa de pessoas interessadas em apoiar o projeto para poder atender e até expandir o número de atividades oferecidas. “A gente não quer que as pessoas tenham pena. A gente quer que as pessoas se apaixonem, que as pessoas achem o lugar encantadorâ€.

Quem puder ajudar pode entrar em contato pela página no Facebook Tamtam – Rolidei ou pelo e-mail contato@tamtam.art.br. Se precisar, ligue para os telefones (13) 97408-7395, 97404-7959 ou 99124-6493.

ENTREVISTA – RENATO DI RENZO

Qual era sua ocupação antes de trabalhar na Casa Anchieta?

Eu trabalhava com arte. Eu expus em tudo o que foi lugar. Eu expus no MASP, no MAC, fiz bienal internacional. Era outro mundo. Eu não gosto muito de recordar coisas assim porque parece que nosso tempo foi melhor do que esse. O tempo bom hoje é esse, mas era outra época. Eu vi a avenida paulista abrir, então isso faz uma transformação muito grande. Foi um momento muito forte. Eu digo que isso é a grande formação da gente. Não é a faculdade que forma, mas esse movimento todo que forma a gente. Eu trabalhava num teatro que recebia censura toda noite. Estávamos experimentando um final de ditadura. É isso que vai te formando enquanto caráter, enquanto homem, ser pensante, fazedor do seu caminho. Isso que é o bacana.

O que fez você aceitar o convite para trabalhar na Casa Anchieta?

Eu digo sempre que o que me fez topar na verdade foi uma profecia. Porque quando eu era moleque e andava de bicicleta na Princesa Isabel, eu tinha um colega que sempre quando a gente passava na porta falava “um dia você vai acabar aí, porque você é muito louco então vai acabar aíâ€. Então eu posso dizer que isso foi uma coisa que me veio à mente. Eu falei “puxa vida, eu vou dar de presente para o meu amigo de infância essa profeciaâ€. Vou falar “olha, eu acabei aqui no Anchietaâ€.

Como foi o retorno a Santos?

Eu vim para ser voluntário e aí eu tomei um susto quando disseram que queriam me contratar. Eu achei isso muito louco. Eu queria ficar uma vez por semana só, mas quando eu vi a carência da coisa, o tamanho do tombo, no mesmo dia eu fui aumentando o horário. Foi muito louco. Eu comecei dizendo que queria vir uma semana, depois eu comecei a falar que vinha todos os dias à tarde. Daqui a pouco eu disse que vinha todos os dias o dia inteiro. Então eu fui aumentando porque cada vez que eu ia conhecendo as pessoas que estavam internadas, eu ia vendo o que era necessário fazer para acontecer alguma modificação. Se fosse para ser só um funcionário, talvez não desse certo. Eu fiquei praticamente morando no hospício. Eu ia embora quando todos já tinham se recolhido.

Como era fazer a rádio?

Um ano depois de pedir recebi um aparelho 3 em 1. Nós pegamos madeira, que existia no Anchieta uma marcenaria, e aí nós fomos lá e pegamos portas. Fechamos um estúdio, colocamos cascas de ovo para acústicas e montamos uma central. Colocamos até uma luzinha vermelha escrito “no arâ€. Nós colocamos 32 caixas de som espalhadas pelo pátio do hospital e aí as pessoas ouviam a rádio. Começava às 9 da manhã e ia até 9 da noite, passando por vários loucutores. Tinha quem fazia a leitura da manhã, outro fazia a sessão Roberto Carlos, fofocas do dia a dia, notícias do hospício e assim ia.

Como surgiu a ideia de colocar a rádio na rua?

Um dia uma senhora perdeu a carteira lá dentro e aí um rapaz falou “vai lá e anuncia na rádioâ€. Ela bateu na porta e foi. Em menos de 5 minutos apareceu a carteira. O que a gente achava que era menor na realidade era muito maior. Então aí eu pirei. Falei “não, tem que levar essa rádio para a ruaâ€. Aí o diretor do hospital achou que eu é que estava louco. Imagina que alguém vai querer aceitar isso?! Aí marquei uma hora com a AM da Rádio Universal. O cara deu três meses de rádio no horário da tarde, meia hora. Ficou o slogan mais lindo do mundo. “Radio TAMTAM, um programa do tamanho da sua loucuraâ€.

Como era o programa?

Era uma ruptura. Entrava às 4 horas da tarde com gritarias, berros, aviões. A rádio Universal era tradicional. E aí foi a coisa mais louca do mundo, em meia hora a gente recebia 23, 24 até mais telefonemas. Era um programa que a gente podia tudo. Basta ver que a gente pegava os telefones das outras emissoras e a gente ligava. E aí pegava os caras de calça curta, tirava um sarro. Aí ligava para outra. Invadia outros programas dentro do nosso programa. Distribuía prêmios, brindes através de parceiros que davam. Era uma loucura de gente.

Viajamos o Brasil inteiro, fazíamos show de teatro. Todos vacinados, maiores de idade e com os remédios psiquiátricos. Estava tudo controlado. Está vendo quanta coisa que foi sendo rasgada? Que não pode isso, não pode aquilo…

Era permitido sair com os pacientes do hospital?

Não, eu tinha que assinar termo de responsabilidade para todo mundo. Eu colocava todos os remédios no bolso, por ordem. Era uma loucura. Às vezes sobrava remédio.

Não tinha alguém para ajudar?

Que nada. E olha que eu pedi. Isso que é o louco. Acho que as pessoas não acreditavam que o trabalho pudesse acontecer. Então tinham sempre outras coisas para fazer. Às vezes eu conseguia ajuda de uma auxiliar de enfermagem que estava saindo. Às vezes encontrava uma pessoa que estava vindo fazer estágio. Era assim. Eu acabava contando com eles mesmos, eram todos adultos.

Como foi quando criou a ONG?

Na época eu reuni alguns amigos, montamos o estatuto e eu fui convidando pessoas. E criamos a ONG. Não tinha essa legalidade de a prefeitura contratar a ONG. Era somente para preservar quando tivesse uma ruptura de governo para a TAMTAM continuar existindo. Não tivemos tempo para dormir, de tanta coisa. Eu nunca trabalhei tanto como foi naqueles oito anos, desde 1989. Tinha muita necessidade. A arte vinha para quebrar isso. As pessoas não pensavam esteticamente. Elas pensavam quadrado, como hoje estão fazendo isso. É isso que me enerva. As pessoas não estão pensando nas pessoas, estão pensando nelas.

A ONG TAMTAM pode acabar?

Pode acabar agora, a hora que a gente quiser. Pior que não ter dinheiro é não ter a compreensão, não ter o entendimento do que vem a ser isso. Vai ter um monte de coisa para levantar dinheiro, vai ter jantar, vai ter show. Até se assinar um convênio para que eu possa contar com uma contribuição mensal. Mas o problema é isso. Se ela se tornar uma coisa que é igual a qualquer coisa, para mim perde o sentido.

Para poder ampliar, ter sempre mais, ter coisas novas, precisa de dinheiro. Não dá para ampliar sem ter dinheiro. Tem gente querendo dar aula de ioga, eu também quero. Já tive capoeira, cinema, fotografia. Hoje não tenho mais.