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Região / Festas Populares

Quando a vida nos traz praça

Passei a virada do ano em São Vicente, na companhia de novos e grandes amigos. Uma saborosa ceia familiar sob o aconchegante pergolado rodeado de um jardim intenso. A bem cuidada horta orgânica fornecia o hortelã para os perfeitos mojitos, especialidade do anfitrião. Uma noite leve e reconfortante, de boa música e com pessoas agradabilíssimas. Mas, um pouco para não cansar os generosos amigos, um pouco pela lua que atiçava minha alma de lobo solitário, às três da manhã me despedi. Tenho isso. Depois de algum tempo preciso partir. E voltei pra casa do jeito mais prazeroso que conheço: pedalando.
 
Havia chovido à tarde e a noite era perfeita. Fui margeando as praias, caminho óbvio do Gonzaguinha até a Ponta da Praia. Em dias normais levo pouco mais de meia hora. Mas nessa virada de ano, com a multidão que encontrei, durou um tanto mais.
 
Talvez por culpa dos mojitos, talvez por exagero literário, mas aquela longa e lenta pedalada na primeira madrugada desse ano teve algo de poético.
 
Os fogos já haviam explodido há um bom tempo, mas os jardins continuavam lotados. E quem não sabe que os fogos são desculpas para acender alguns encontros?
 
Já no José Menino a multidão pintava de branco quase todo o jardim e a calçada. Gente de todos os jeitos. Famílias, grupos de amigos, turistas bem arrumados, moradores com suas cadeiras, caixas térmicas e algumas taças, grupos pequenos e grandes galeras. Idosos, jovens e crianças indo juntos em rios de gente alegre.
 
E eu ia sem pressa, curtindo aquela festa. Em princípio pela ciclovia, respeitando o meu lugar. Mas a pista estava cheia e alguns, ao se perceberem no caminho, saiam rápido da passagem. E até se desculpavam. Eu passava bem tranquilo e apenas devolvia, tentado ser gentil: “Feliz ano novo!â€
 
Foi então que eu percebi o quão tolo eu seguia.
 
Eu ia certo, acreditava, pedalando na ciclovia. Mas todo certo é relativo. A ciclovia é para os ciclistas. Mas não àquela hora. Não naquela noite em que a festa acontecia. E era como se ouvisse: “Hoje não, senhor ciclista. Hoje é festa, estamos juntos e o caminho é todo nosso!†Então parei e entendi. Dali a pouco vem o sol, o transito volta ao seu lugar. Tudo retorna como antes com cada coisa em seu lugar. E a noite é curta como a vida, pra que saudade da certeza, dos caminhos certos e traçados?
 
Eu como eles, tinha do tempo só um tanto pra esquecer as linhas retas e apenas brincar de ir.
 
Então saí da ciclovia e fiz meu caminho pelo asfalto ainda fechado para o transito. Aproveitei com muito gosto a rara oportunidade de pedalar no meio da pista. Fiz curvas e mais curvas, pelo prazer de deslizar. De lá pra cá, de cá pra lá, avançava devagar, rodando em círculos, fazendo o oito de repente.
 
Segui em curvas maravilhosamente desnecessárias, traçando os sábios caminhos que só fazia no meu tempo de menino. Eu ia tolo, eu ia bobo, como pensassem talvez os que só andam em linha certa. Mas eu não ia só.
 
E relembrei naquela noite que talvez seja tolice seguir tão reto quando a vida nos traz praça.
 
Mas não deixei de notar os que trabalhavam. Perto da festa e tão longe dela, os agentes da limpeza, em batalhões, já iniciavam o trabalho. As equipes de trânsito, os guardas municipais e policiais, de pé por toda a noite, marcavam os limites da brincadeira. Lembravam que a liberdade tinha fronteira, que tudo tinha hora para acabar, que a vida normal retornaria em pouco tempo.
 
E eu, sempre crítico do sistema, dessa vez lembrei apenas, em cada farda e uniforme, a presença de minha mãe, atenta a minhas primeiras pedaladas no quintal de minha infância.